Eu, criminosa, me confesso
Certo dia, ocorreu-me resumir: “Os filhos, para os pais, são sempre crianças; os pais, para os filhos, são eternos.” De facto, custa-me processar o envelhecimento dos meus pais. Já eles continuam a apresentar-me como “a minha mais nova” – e, invariavelmente, a minha irmã como a “mais velha” deles. O destino assim quis. Algo semelhante sucede com o Pedro, que ainda ouve o pai interpelá-lo com um: “Ó rapaz...”. Eis-nos crianças nos braços da eternidade.
Nunca encarei a maternidade como um desígnio. Mas, ao primeiro som da minha filha, tive uma certeza imediata: “Ela é minha, e eu estou aqui para a proteger.” Nunca compreendi a parentalidade quando ma tentaram explicar. Não tento explica-la aos outros. A mudança é profunda e misteriosa. Não me lembro da minha vida antes dela e, por mais difícil que se torne (e torna!), por mais desafios que imponha (e são muitos…), nunca houve um instante de arrependimento – nem sequer de ressentimento. Ela é minha, e sei, desde o âmago, que o meu propósito é protegê-la.
Ao longo dos anos, essa proteção traduziu-se num esforço contínuo e empenhado em prol da sua capacitação. Um caminho, claro, não isento de crítica. “Tens de a estimular”, dizem uns. “Devias dar-lhe paracetamol”, sugerem outros. “E já fizeste isto?”, pergunta aquele ali. Ah… atenção ao vestuário! A camisola é curta, a saia está engelhada! Usa sempre o mesmo casaco... Não tem meias? E sapatos?
E esse cabelo, sempre desgrenhado… “Ó príncipes, meus irmãos […]”[1].
A minha filha é neurodivergente. O seu cérebro funciona de forma diferente da norma – ou seja, dos chamados neurotípicos (para não falar dos normopatas). É tudo o que a ciência sabe. Não tem diagnóstico, não encaixa em categorias predefinidas. Isso perturba, sobretudo, o ‘sistema’ – que se desorienta quando não pode catalogar, rotular, classificar. Ela não tem etiqueta, nem bula, nem manual de instruções. Pior! Não disponibiliza livro de reclamações. Imagine-se a desfaçatez! Homessa!
Hoje em dia, a existência de coisas, pessoas – pior ainda, CRIANÇAS – que escapam aos moldes pré-estabelecidos e, por isso, não constam do catálogo, representa um desafio acrescido. A diferença desconcerta, desafia, exige reflexão e adaptação. E isso dá trabalho. As pessoas, a sociedade, o sistema educativo – todos parecem incapazes de lidar com o encargo de consciência que a diferença impõe. E, em vez de o assumir, apressam-se a tentar transferi-lo para outros. Vivemos entre pessoas que “desaprenderam de morder”[2]. Assim, a luta torna-se permanente e exaustiva; e a crítica, afiada, feroz, meticulosamente destrutiva.
Eu, que acreditava na bondade e depositava fé na inteligência humana – a racional e a emocional –, sinto que a minha crença era apenas isso: uma crença. Assim, “Perde-se-me um remédio, que inda tinha; Se por experiência se adivinha, Qualquer grande esperança é grande engano.”[3]
Onde está a origem de todo o erro? Quem é o principal suspeito? Aquele que nem merece a luz do princípio in dubio pro reo? Eia! Acertaram tão depressa? É mesmo óbvio, não é?
A culpa é da mãe, porque… Porque sim. Porque há sempre algo que falhou, algo que deveria ter sido diferente, melhor, perfeito. As falhas são incontáveis, o papel deste jornal não bastaria para as enumerar. Além disso, “...bandeira vencida de chão em chão”[4] não costuma ser de interesse. Queremos a glória! Afinal, dos fracos não reza a História. Pois não?
Mas o que posso eu fazer para construir essa glória? Não a minha, a dela – que ainda nem foi erguida, quanto mais reerguida. Sei que “para reerguê-la a cólera não basta. Nem os punhos de vidro quebrado da solidão”[5].
Como se convive com uma sociedade que recusa a ver e a agir? Com um sistema de ensino que exclui? Com a intolerância e a ignorância que persistem face à diferença? Como se liga o motor da compreensão e da consequente ação? Como se desperta a criatividade? Como se ensina a olhar o mundo por outra perspetiva? A imaginar alternativas?
Como fazer com que as pessoas ergam os olhos para o céu, como os gregos antigos, e se deixem maravilhar pelo incógnito? Como fazê-las perceber que o desconhecido é belo, e que vale a pena explorá-lo em vez de temê-lo?
COMO? Alguém sabe a resposta? Alguém? Ninguém? Pois...
Os danos que me vêm causando ao longo dos anos deixam cicatrizes. Umas mais profundas do que outras. Hoje sinto-me ferida e sangrenta, como esta leoa que combateu para proteger a sua cria. Por ela, a luta será sempre até à morte. Assim:
Aqui estou. Perante vós. Eu, criminosa, me confesso. Que se atire a primeira pedra.
Priscila Ferreira. Mãe.
Esta crónica é dedicada às mães, aos pais, e a todos os que, dia após dia, dão o seu melhor – e, ainda assim, sentem que não é suficiente. Entre nós, resiste a esperança de que sejam os nossos filhos os embaixadores do legado que construímos. Um legado tecido de esperança e de luta.
“Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim, altiva e nua,
com força que não recua,
a verdade mais veraz.
Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.”[6]
[1] “Poema em linha reta”, Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
[2] “No regresso há sempre uma mala...”, José Gomes Ferreira
[3] “Corro após este bem que não se alcança”, Luís Vaz de Camões
[4] Idem Nota 2
[5] Idem Nota 2
[6] Cantiga de Abril, Jorge de Sena
Crónica publicada no Correio do Minho de 26 de Abril de 2025
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