Um violino no telhado

 


Era um daqueles fins de tarde de verão em que o tempo parece abrandar e o céu, tingido de âmbar e púrpura, anuncia uma beleza que não se explica – apenas se sente. Sentado na varanda, envolvido pela quietude morna do entardecer, comecei a ouvir, ao longe, o som de um violino. Não era um som qualquer: havia nele uma melancolia antiga, como se o próprio dia tocasse para si uma despedida serena.

As notas flutuavam sobre os telhados com uma leveza quase mágica, entrelaçando-se com o canto dos grilos – a banda sonora das noites de verão – e com o sussurro suave da brisa. Tudo encaixava: o som e o silêncio, o calor e a nostalgia, a solidão e a presença de algo maior. Havia no ar uma harmonia invisível. Um equilíbrio subtil. Um sentimento de que, ainda que por instantes, tudo poderia fazer sentido.

Lembrei-me então do filme Um Violino no Telhado e da sua descrição: “Uma história universal sobre esperança, amor e aceitação.” Palavras que ganham profundidade à medida que os anos passam. E assim, naquele final de tarde, quedei-me a pensar no violino – esse instrumento tantas vezes símbolo de melancolia, mas também de resistência e beleza. O violino tem algo de universal. Pode ser barroco ou popular, erudito ou improvisado. Mas é, acima de tudo, voz.

Voz sem palavras, que atravessa fronteiras, épocas e línguas. Um violino tem quatro cordas – tantas quantos os pontos cardeais, os elementos da natureza, as estações do ano. Afinadas em quintas justas, cada corda tem uma personalidade tímbrica, que responde com subtileza ao movimento do arco. Sons doces ou intensos, à espera de serem libertados. Cada corda, uma possibilidade; cada nota, uma voz singular num coro íntimo.

O som vinha do alto, recortado contra o céu que se desvanecia em tons de vermelho. Não via o violinista, mas a sua música chegava límpida, como se o telhado fosse o palco de um concerto secreto oferecido ao entardecer. E que concerto! Dei por mim a imaginar que ele tocava num Stradivarius. Há palavras que carregam séculos de mitos, e esta é uma delas. Construído com a precisão de um mestre artesão e a sensibilidade auditiva de um génio, o Stradivarius, dizem, é a personificação da harmonia. Fala-se muito sobre o segredo dos Stradivarius. Alguns dizem que está na madeira ressonante do século XVII, outros no verniz, outros ainda nas proporções quase perfeitas (próximas da proporção divina) do corpo do instrumento. Talvez seja tudo isso – e mais alguma coisa. 

O que sei é que, ao ouvir aquele som elevar-se como se fosse parte do próprio ar, compreendi que há momentos em que a beleza deixa de ser apenas contemplação – torna-se revelação. E nessa revelação, quiçá, resida a esperança de que, entre o caos, a dor e a dúvida, subsista algo maior: uma ordem invisível, um sentido que nos escapa, mas que nos chama. Ainda que esse chamamento venha do telhado de uma casa que não vejo.

Mas nem só de magia se faz a beleza de um Stradivarius. Há quem prefira olhar para o mistério à luz da ciência. Javier Sampedro, numa crónica publicada no El País em dezembro de 2016, lembra-nos que a busca pela explicação do som cristalino destes violinos tem sido uma obsessão para cientistas, luthiers e músicos há séculos. O fascínio pela forma como um simples objeto de madeira pode produzir um timbre tão subtil e inconfundível levou investigadores dos quatro cantos do mundo a tentar decifrar o enigma. Apesar de os Stradivarius serem feitos com madeira de acero, como tantos outros violinos de época, as imitações falharam sempre em replicar o seu código harmónico. 

Sampedro relata que um grupo de cientistas de Taiwan descobriu que a diferença está, sobretudo, nos tratamentos químicos usados na época – uma tradição que se perdeu com o tempo. A madeira não era apenas selecionada: era também tratada com minerais, e esse tratamento alterava as suas propriedades acústicas. Junte-se a isso os séculos de vibração contínua e temos, literalmente, um novo material – um composto orgânico e inorgânico que o tempo moldou como só o tempo sabe fazer.

É curioso: a química, tantas vezes vista como a antítese da arte, pode afinal ser a guardiã do seu segredo. Há algo de poético nesta ideia. Alguns neurocientistas vão mais longe e afirmam que toda a experiência estética é, em última instância, química: aquilo que sentimos diante da arte – aquele arrepio, aquela lágrima inesperada, aquele suspiro – é desencadeado por substâncias que percorrem o cérebro em caminhos ainda por mapear. Talvez um dia se descubra a fórmula do belo. Ou talvez seja melhor que não.

A ligação entre arte e ciência não é tão rara quanto se possa pensar. Albert Einstein, por exemplo, encontrava no violino uma fonte constante de alegria e inspiração: “Se eu não fosse físico, provavelmente seria músico. Muitas vezes penso em música. Vivo os meus devaneios em música. Vejo a minha vida em termos de música... sei que é do meu violino que retiro a maior alegria da vida.”

Na obra de Vergílio Ferreira, a música surge como uma metáfora privilegiada da experiência estética e existencial. Mais do que som, ela é presença – uma linguagem que, como a escrita, tenta tocar o indizível. No romance Cântico Final, a música representa o absoluto, o eterno, aquilo que escapa à razão, mas que se pressente como essencial. Já em Para Sempre, o reencontro do protagonista com o violino da infância é um momento de conexão com o passado e com a própria identidade, revelando a música como espelho da interioridade. Para Vergílio, a música é uma ponte entre o visível e o invisível, entre o tempo e o intemporal. Talvez por isso, na sua visão, a arte – e em especial a música – seja uma das poucas formas possíveis de estar verdadeiramente presente no mundo. Em Conta-Corrente I escreve:


Por entre os sons da música, ao ouvido

como a uma porta que ficou entreaberta

o que se me revela em ter sentido

é o que por essa música encoberta

 

acena em vão do outro lado dela

e eu sinto como a voz que respondesse

ao que em mim não chamou nem está nela,

porque é só o desejar que aí batesse.


E é disto que me lembro agora, ao pensar naquele violinista solitário a tocar para o céu. Enquanto o mundo se recolhe, a madeira, o metal, a resina, os anos – tudo se transforma em vibração. E a vibração torna-se som. E o som, arte. E a arte, infinita.

Aquele violino suspenso no calor da noite é uma ponte entre o céu e a terra – como se cada nota fosse uma estrela a cair, silenciosamente, no coração de quem a escuta. Sergei Rachmaninoff escreveu: “A música é suficiente para uma vida, mas uma vida não é suficiente para a música.” E talvez seja isso que nos move – esse saber íntimo de que há algo que nos escapa sempre, mas que nos eleva enquanto tentamos alcançá-lo.

Que todos possam escutar, ainda que ao longe, como num eco de outra vida, o som de um violino vindo de um telhado. Que guardem essa melodia no coração e, ainda que por breves instantes, sintam a presença serena, mas intensa, de quem, na ausência, se transformou em silêncio.


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Crónica publicada no Correio do Minho de 16 de Junho de 2025






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